quinta-feira, 28 de junho de 2007

O religioso

Neste bloco temático vou referenciar aspectos que achei extremamente curiosos na relação estabelecida entre a comunidade travesti e o sobrenatural/religioso. Na verdade, tornou-se claro para mim que a maior parte delas são originárias do nordeste do Brasil, a partir das entrevistas e das muitas conversas que fui mantendo e escutando, no entanto, não querendo estabelecer qualquer nexo de causalidade generalizante, tornou-se um dado empírico recorrentemente fornecido pelas minhas informantes, o facto de serem oriundas de famílias evangélicas, extremamente tradicionalistas e conservadoras. Logo o deus Jeová é frequentemente referido e solicitado no seu dia a dia. Um pouco na senda do fenómeno social total de Marcel Mausse, o exemplo que a seguir ilustrarei, demonstra como a condição de género não é autónoma, relacionando-se com uma multiplicidade de outros factos sociais, nomeadamente com o aspecto religioso. Na entrevista com Paula, a dada altura verifiquei que na sua oralidade ela assumia o género masculino quando falava em deus, o deus cristão, embora assimilado através de uma das suas seitas em ascensão no Brasil. Reparando nisso, não resisti a colocar-lhe a questão relativa a essa postura, a sua resposta demonstrou mais uma vez que a questão do género pode ser variável, consoante o papel que se desempenhe, neste caso a travesti devota, perante deus assumia-se como homem, porque de outra forma seria pecado.
Deste modo, o deus cristão, aparece muito nos seus discursos, sendo inclusivamente invocado em situações que elas próprias consideram pecado a seus olhos, o que nos transportaria para a ambivalência e plasticidade dos discursos religiosos. Por outro lado temos as práticas relacionadas com o Umbanda e com o Camdumblé;

This gendered inversion is usually tied to other instances of inversion, such as man dressing up in female clothes during carnival, the male homosexual component in the afro – brazilian religion candomblé, and the androgynous personae of several of brazil`s most famous singers and songwriters(Kulick1998:9).
(…) porque o homossexualismo, é muito ligado a esse tipo de coisa, entende, ao candomblé, a santa Iria, tudo isso, mas o caso, eu não sou uma pessoa que esteja ligada demais a isso, eu creio, só que a própria bíblia fala que existe mais coisas entre os céus e a terra do que a vossa boa filosofia possa entender (Entrevista a Paula:35).

Era recorrente verificar a existência de telefonemas para o Brasil, com o intuito de resolver imbróglios amorosos ou questões relacionadas com mau axé* na actividade.
Atenção que tudo o que aqui está deve ser contextualizado com o grupo em questão, aquelas que observei, entrevistei e com quem troquei ideias.

5 comentários:

Marta disse...

Não acredito nada nesta teoria da igreja do Deus que castiga e dos pecados, em que as pessoas não fazem isto ou aquilo porque é pecado. não há nada mais castrador e anti liberdade do ser humano do que agir em função dos pecados e de ir para o ceu e inferno. É por isso que acredito em Deus, mas não nas religiões!

bela lugosi`s dead (F.JSAL) disse...

é exactamente essa uma das vertentes do que faço,desconstruir aquilo que se diz tantas vezes, sem sequer se questionar a sua origem, no entanto, eu que não acredito em deus nenhum, acho tão legítima a existência de paraíso e de um inferno, como a própria existência de deus.O importante aqui é perceber como se articulam discursos e como a coerência sistemática em que acreditamos viver, não passa de um outro tipo de religião...a concépção sistémica de um mundo, em que as emoções e as ilusões de todo o tipo, continuam a fazer lei, bastando para isso acreditar. Somos apenas humanos:)

Moura ao Luar disse...

Os brasileiros, apesar de serem um povo muito aberto em determinados aspectos da sexualidade e do culto da beleza continuam ainda a manter a tradição religiosa, o que muitas vezes se pode tornar uma contradição interior para quem tem "comportamentos desviantes", ou sejam, do que é aceite pela religião.

Henrik disse...

Ora, vou por partes, respondendo ao meu colega Lugosi (não me levarás a mal que eu sei =)]Não existe cristandade sem satanismo, e vice-versa, e não falo em termos de paradoxos que se embrulham entre si, mas antes que a religião cristã admite a maldade como parte da sua doutrina da bondade (admite Satanás, aliás criou-o nesse ponto de vista). Respondendo a outra questão, ora Portugal também é um país asfixiado pela religião católica o que é dito sobre os brasileiros aplica-se igualmente a nós. Quanto ao texto, tenho é uma pergunta, retiraste alguma ilação do ponto sociológico dessa observação? isto é o que te parece ser a causa desse factor? =)

bela lugosi`s dead (F.JSAL) disse...

Olá Henrik, ao constatar o posicionamento da questão do género perante o religioso, recordo-me que no decorrer da própria entrevista, algumas obras e ideias me vieram de imediato à memória, nomeadamente o fenómeno social total de Mausse, o Futuro de uma Ilusão e Mal Estar na Civilização de Freud,a importância do simbólico com representação do "real" (Goudelier), o carácter estratégico e permanentemente reinventado dos discursos identitários, sendo que o corpo é um dos veículos privilegiados dessa identidade e sua marca(Mauss, Kafka), etc... No fundo o que se evidenciou para mim através deste pequeno pormenor, foi o que de outras formas já tenho deixado transparecer, a volatilidade da construção do género. Abraço