quinta-feira, 1 de março de 2007

Interpretando o quotidiano á luz do habitus e da lei
















Quem viu o primeiro dos dois programas “prós e contras” realizado, penso que duas semanas antes do referendo sobre a despenalização da interrupção voluntária da gravidez (vulgo aborto) constatou através de um inteligente comentário ao nível da mais requintada e irónica maiêutica socrática, a existência do real habitus de Bourdieu e do seu constante conflito com a lei e com a autoridade.

A desadequação clara da LEI humana face á pratica da vida dos homens ficou tão clara na irrefutável tautologia das palavras de um senhor que se sentou do lado do sim, que quanto a mim , se fechou de imediato o programa nem dez minutos haviam passado do seu inicio... e claro não houve sofisma que fizesse valer as restantes duas horas...

Onde quero eu chegar então. Passo a dar o exemplo de excelência do referido senhor do qual não me recordo o nome que defendia que a lei deve de estar de acordo com a moral e com a cultura dos indivíduos e não contra ela, sugerindo então que levantasse a mão todo aquele que na plateia, sabendo de casos de aborto efectuados pelas suas mães, irmãs, primas, tias, sobrinhas vizinhas ou amigas o foi denunciar á policia?

Fez-se silencio
Não se levantou uma única mão, a não ser quando alguém decide expressar-se num aplauso e é seguido avidamente por pelo menos metade da plateia.


Numa definição original e sistemática o habitus define-se como um conjunto de

"sistemas de posições duráveis, estruturas estruturadas predispostas a funcionar como estruturas estruturantes enquanto princípio de geração e de estruturação de práticas e de representações que podem ser objetivamente 'reguladas' e 'regulares', sem que, por isso, sejam o produto da obediência a regras, objetivamente adaptadas a seu objetivo sem supor a visada consciente dos fins e o domínio expresso das operações necessárias para atingi-las e, por serem tudo isso, coletivamente orquestradas sem serem o produto da ação combinada de um maestro" (BOURDIEU apud MICELI, 1987: XL).

Segundo Maria Setton em “A teoria do habitus em Pierre Bourdieu: uma leitura contemporânea” o Habitus surge como conceito capaz de conciliar a oposição aparente entre realidade exterior e as realidades individuais. Sendo capaz de fazer a dialéctica constante e recíproca entre o mundo objetivo e o mundo subjectivo das individualidades. Habitus é então estruturado (no social) e estruturante (nas mentes), adquirido nas e pelas experiências práticas e orientado para funções e acções do agir quotidiano.

Tendo em conta esta relação dialéctica constante entre o passado, o presente e o futuro, o habitus torna-se sem duvida num fio condutor para um futuro nem sempre previsto mas pelo menos desejado e que condensa em si os esforços dos indivíduos para o alcançar. Por isso mesmo as forças externas que se imponham contra este plano presente na mente dos indivíduos estão condenadas ao fracasso.

Vemos no entanto que esta lei básica do comportamento social humano parece ser muitas vezes ultrapassada pela lei mesmo nos estados democratas onde a democracia, enquanto “representativa” não está apta a fazer a ponte entre a real pratica e a concepção da lei.

O que tento dizer aplica-se igualmente a outros casos. Muitos dos casos polémicos existem apenas enquanto polémicos porque é a própria lei que os torna polémicos conduzindo-os a enclaves desnecessários.

Outro caso mediático e igualmente paradigmático de conflito entre a lei e a pratica social é o caso da criança dividida entre a família adoptiva que a criou desde os três meses de idade e os pais biológicos. Mais uma vez podemos detectar no mínimo duas falhas resultantes desta mesma problemática.

Segundo consta, o casal em questão tentava há anos adoptar uma criança sem resultados práticos uma vez que o sistema legal para a adopção tal como outras tantas coisas em Portugal pura e simplesmente não funciona... e , não funciona ao ponto de alguns casais desistirem da ideia de adoptar crianças pelos próprios mecanismos de auto defesa emocional e psicológica perante anos a fio de entrevistas e promessas que os sistemas sociais não cumprem. Mais grave é o facto de existirem milhares de crianças que continuam a viver em instituições de acolhimento porque o estado pura e simplesmente não consegue gerir recursos e mecanismos que realizam a ponte entre potenciais pais adoptivos e crianças institucionalizadas. Perante esta situação, e retornando ao anterior caso, a família que adoptou a criança , encontrou na precária situação da imigrante uma forma de satisfazer as três partes – satisfazer o seu desejo enquanto família de poder adoptar uma criança; satisfazer a mãe da criança do peso de não poder dar boas condições de vida á criança e , satisfazer a própria criança que daí em diante poderia começar a ter uma vida normal no seio de uma família ( aparentemente) funcional.

Acontece no entanto que a lei gera mais uma vez espaço parra duvidas onde não parecem existir duvidas em termos de habitus e pratica social. Acredito que se houvessem mecanismos de sondagem com custos mínimos, se a população portuguesa fosse questionada (antes de toda a lavagem mental mediática) acerca do sucedido, ou seja, com quem deveria de ficar a criança de quatro anos de idade a opinião da esmagadora maioria seria inequívoca.


Tal como a memoria histórica também os hábitos práticos e morais semi-cristalizados não podem ser apagados de um momento para o outro ou numa ou em duas gerações. O poder central apenas poderá moldar subtilmente as percepções dos indivíduos face aos factos históricos bem como ás práticas comuns cristalizadas nas culturas dos povos, são no entanto pequenos impulsos que afinam a direcção que os lideres querem apontar aos súbditos. Esta foi tão somente uma das maiores lições históricas do passado século, a de que o autoritarismo evidente causa rebelião, o autoritarismo disfarçado de liberdade causa mais passividade, conformismo e permite o controlo dos sobressaltos pelo simples facto de poder haver catarse perante eventuais injustiças como pela diminuição da legitimidade de actos violentos.

É assim devido a este espaço de discussão que existem polémicas e desentendimentos desnecessários que eu , acredito poderiam ser diminuídos se a distancia entre o sentimento cultural e moral dos povos não se encontrasse cada vez mais distanciado do poder politico e jurídico e internacional.

Paradoxal quando pensamos que os primeiros antropólogos foram precisamente homens de leis ver estes últimos cada vez mais distanciado da voz dos povos e das culturas e confinados a ordens elitistas onde vivem OUTRAS sociedades e as impõem a outros.

1 comentário:

Pitts para venda disse...

A lei deverá ser vista como uma instituição que acomoda os padrões comportamentais dos indíviduos, se tal não suceder,significa que está morta...infelizmente, várias leis estão mortas naquilo que deveria ser a sua origem (mesmo ao nível da retórica democrática), tal prova que não vivemos num mundo justo, mas sim num mundo de conveniências e agendas políticas. Anthony Giddens, um dos teóricos das questões da pré-modernidade, pós modernidade e modernidade tardia, coloca a questão: o que nasce primeiro, as instituições ou as práticas? Quanto a mim, as instituições e suas leis deviam reflectir as práticas...mas...digo deviam... Hegel disse e com razão no meu entender, quando elas não traduzem as práticas são pronúncio de morte.

Portugal saltou a fase da modernidade, após anos de ditadura, vendo-se despejado numa fase de pós-modernidade, logo a forma bonita das coisas não bate certo com a sua materialidade. Não sou um adepto da opinião fácil de que tudo o que se faz em Portugal é mau, mas secalhar deviamos mesmo ser mais exigentes com quem detém o poder...de novo na questão das populações informadas...que não interessam aos caciques "made in Portugal", mas sem direito a exportação.